Antropológica do Espelho– Uma teoria da comunicação linear e em rede
(Muniz Sodré, 2001)
“Como sair nos jornais com grande destaque? É muito simples. Basta que você elabore uma ideia com uma imagem muito nítida. Fatos que tenham conteúdo não têm a menor importância”. (César Maia, ex-prefeito do Rio de Janeiro)
I. O ethos midiatizado
A mídia gera um bios virtual. Tecnologias de comunicação fetichizam a realidade e reduzem a “complexidade das antigas diferenças ao unum do mercado”. P.11
A sociedade da informação é “indiferente a tudo que não seja a velocidade de seu processo distributivo de capitais e mensagens (…) as transformações tecnológicas da informação mostram-se francamente conservadoras das velhas estruturas de poder, embora possam aqui e ali agilizar o que, dentro dos parâmetros liberais, se chamaria de ‘democratização’”. P.12
A dita Revolução da Informação “centra-se na virtual anulação do espaço pelo tempo, gerando novos canais de distribuição de bens e a ilusão da ubiquidade humana (…) o diferencial é a aceleração distributiva (o oikonomos intensificado) dos processos (…) Em termos públicos, o fenômeno recebe o nome de globalização, mas politicamente coincide com a ideologia do ‘neoliberalismo’, uma plataforma econômico-político-social-cultural, empenhada em governo mínimo, fundamentalismo de mercado, individualismo econômico, autoritarismo moral e outros”. P.14
“Tudo isso se põe a serviço não apenas do Estado, mas também das grandes organizações civis (empresas multinacionais, corporações de serviços, etc.), que, pari passu com o aumento exponencial de dados sobre consumidores reais e virtuais, consolidam pela vigilância contínua o seu poder de identificação e mobilização dos antigos cidadãos políticos nas funções atribuídas pelo mercado”. P.16
O conteúdo perde importância, partidos perdem influência. “A chamada ‘despolitização’ midiática ou tecnológica resulta, por sua vez, do enfraquecimento ético-político das antigas mediações e do fortalecimento da midiatização (…) a tecnointeração toma o lugar da mediação, desviando os atores políticos da prática representativa concreta (norteada por conteúdos valorativos ou doutrinários) para performance imagística”. P.34.
Há uma “tendência à substituição do discurso objetivista, argumentativo e racionalista (…) pela narratividade (na forma de ‘casos’) emocionalista da midiatização, o que significa trocar a opinião arrazoada pela percepção esteticista da performance”. P.41.
“O que o midiático deixa na obscuridade pode implicar aspectos cruciais da vida social (decisões político-econômicas, planejamento das cidades…) (…) Pode-se também deixar na obscuridade fatos históricos importantes e assim apagá-los da consciência pública”. Trata-se de enganar mostrando, o ‘engana-olho’ estético: o ‘agradável’ da forma exibida anestesia sensorialmente a sensibilidade crítica”. P.59
A mídia fala do mundo para vendê-lo. “Sua moral utilitarista , com o mercado como vetor de mudanças (…), não contempla a utilidade social, pelo contrário, é privatista e redutora da sensibilidade quanto ao coletivo”. P.64
II – A hexis educativa
A educação neste século corresponde a um modelo societal compatível com o regime fordista de trabalho: divisão e especialização, visando à produção em série. P.89. Neste regime, educação e saúde parecem tornar-se gastos sociais por demais elevados para os interesses industriais. P. 90
Educação tecnicista, pedagogia individualista, ideologicamente utilitarista: “aprende-se parcelarmente e funcionalmente, em função das exigências fragmentárias da indústria ou do mercado. Não se instala aí nenhum horizonte ético, a não ser o da deontologia empresarial”. P.102
“A passagem progressiva das instituições tradicionais à condição de puras prestadoras de serviços afeta grandemente os núcleos de elaboração e transmissão de valores capazes de atenderem às exigências das novas formas de representação social. Sem modelos seguros, a plástica consciência do jovem torna-se facilmente permeável à regulação tecnocultural do mercado, cujos valores básicos são a fama (…) e o poder monetário”. P.110. Eis a geração Y, que “tipifica um novo modelo de individualização, que transforma o consumo hedonista e o ludismo tecnológico em grandes fins existenciais”. P.111
III – Virtus como metáfora
No cinema, televisão ou videogames, a projeção “constrói-se paulatinamente, juntamente com as ficcionalizações publicitárias, uma vida paralela ou vicária, com as características culturais de uma realidade virtual. Mas a imersão do participante na experiência é puramente mental ou afetiva”. P.122
A realidade virtual “implica uma espécie de transição entre alucinação e ilusão – ou então, uma ‘alucinação consensual’, para se usar a expressão cunhada por William Gibson. O espectador ou usuário aceita incialmente o pacto da ilusão (…) e experiência alucinatoriamente (mas de modo tecnologicamente controlado) a mediação criada pela máquina. Tudo isto transcorre na mente do espectador, enquanto seu corpo – separado, como nas experiências com drogas alucinógenas ou nas descrições esotéricas de ‘viagens astrais’ – permanece ancorado no espaço físico”. P.143
IV – Communitas, ethiké
“Agora é a forma vazia de mercado (tal qual a razão prática criticada por Kant), para além das operações concretas de troca econômica, que tende a confundir-se com a existência cotidiana, graças à simulação midiática – de fato, uma nova tecnologia societal – de uma forma de vida, um novo bios, que tenta reduzir todas as variáveis humanas em nível da forma vazia de mercado”. P.190
“Os cenários contemporâneos (…) sinalizam para a hipertrofia das formas civilizatórias (o urbanismo colonizador em várias instâncias) sobre as culturais, ou seja, apontam para a hegemonia das raízes da civilização ocidental, cristã e branca sobre outros princípios originários de organização do mundo.
Instantaneidade, simultaneidade e globalidade (o tempo real) constituem (…) os valores de todo esse processo”. P.199
“A ética pressupõe períodos de contemplação, deliberação e a adoção de um cálculo moral. Quem tem tempo para tal auto-análise quando o mundo está girando na velocidade da Internet?”. (MORBERG, Dennis. In: Fortune Américas. Cf. Jornal do Brasil, 4/4/2000). P.200
V – Communicatio e epistème
Nesta nova etapa histórica do capital, a dimensão societal (Estado, empresas) procura estender-se até as zonas menos determinadas da socialidade. De um lado, a ampliação do controle societal sobre o próprio fenômeno biológico do homem – por genética ou biotecnologia; de outro, o controle das redes de socialidade (parentesco, vizinhança, amizade, amor, etc.), que escapavam à regulação dos aparelhos societais – por midiatização, por formas virtualizadas da vida”. P.238
“A mão-de-obra técnica do bios midiático (jornalistas) costuma afetar um certo desprezo pela teoria, porque se acha mais autorizada para falar do que faz”. P.252
A questão fundamental de uma ciência da comunicação é a vinculação humana, o que implica “pesquisar os caminhos políticos de abertura existencial para o homem contemporâneo, a quem se tenta dar a impressão de que tudo está dito pela técnica ou de que o futuro já chegou”. P.258
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