Há muito, numa pacata vila do sudoeste da Grã-Bretanha, os habitantes passaram a confrontar as leis locais. Tumultos, pequenos delitos. O senhor feudal, então, mandou construir uma forca no meio da praça principal. Ninguém chegou a ser condenado à morte. Mas, subitamente, a ordem foi reestabelecida.
Um sujeito reclama ao amigo que a sua vida em casa estava um inferno. O amigo o aconselha a por um bode na sala. Ele segue o conselho. O bode exala um cheiro ruim, suja a casa e ataca os familiares, que se unem contra a presença do bicho. O sujeito, então, o retira da sala. A paz volta a reinar. Parábola chinesa
Jair Bolsonaro deixa o palco. E um país geopoliticamente subjugado, tecnologicamente atrasado, dependente, mais pobre, precarizado, ignorante.
Mesmo com as privatizações, aumentou a dívida pública em R$ 1 trilhão e gastou mais de U$ 60 bilhões das reservas do país. Ainda assim, seu Real megadesvalorizado conseguiu façanhas históricas.
“O boato pode ser criado, deliberadamente, por pessoas interessadas em explorar os seus efeitos (…) Mesmo que sua autenticidade seja, por vezes, duvidosa, e sua origem, impossível de localizar, o boato será rapidamente difundido se tiver sido convenientemente escolhido e oportunamente lançado“. Manual de Campanha de Operações Psicológicas do Exército Brasileiro, págs. 2-15 e 3-3
A urna eletrônica entrou em operação nas eleições municipais de 1996. Ao ser registrado, o voto era impresso e depositado num recipiente sob responsabilidade da autoridade eleitoral.
Em 1998, ano da primeira eleição sem comprovante físico do voto, o então senador Requião apresentou projeto propondo que o eleitor pudesse visualizar seu voto impresso antes de confirmá-lo eletronicamente. O sistema só possibilitaria contato manual se as informações contidas no papel fossem diferentes do meio eletrônico: o voto, então, seria registrado numa cédula eleitoral.
Do outro lado, o TSE citava um laudo elaborado pela Universidade de Campinas (Unicamp) que garantia: o sistema eletrônico é “robusto, seguro e confiável, atendendo a todos os requisitos do processo eleitoral brasileiro”.
“O PSOL vai votar a favor do voto impresso. Esse é um modelo que já existe em vários outros países do mundo. Inclusive é o modelo de votação, há bastante tempo, da Venezuela, que combina voto eletrônico com voto impresso. No ano de 2011, Jimmy Carter disse que esse era o melhor modelo de votação do mundo. Lá já existe o voto impresso“. Glauber Braga, líder do PSOL na Câmara, outubro de 2017
Surge, então, o capitão: formalmente na presidência da República, os militares e seu porta-voz passam a questionar o sistema eletrônico que os elegeu.
A estrutura operacional-financeira das eleições nacionais se confunde com a das Forças Armadas. Ao lançar boatos alimentados diariamente pela mídia, o sistema faz com que o inimigo, que deveria investigá-lo, passe a defendê-lo. As primeiras linhas do Manual de Operações Psicológicas do Exército evocam Sun Tsu: “Lutar e vencer todas as batalhas não é glória suprema. A glória suprema consiste em quebrar a resistência do inimigo sem lutar“.
“Nossa civilização escolheu a máquina, a medicina e a felicidade. Eis por que é preciso guardar esses livros trancados no cofre”. Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo
As leis marciais da pandemia consolidam a Era das Distopias. A tecnofinança engole todas as relações humanas: institucionais, produtivas, comerciais, educativas, afetivas.
Mais matéria-prima gratuita transformada em dados comportamentais. Shoshana Zuboff, Capitalismo de Vigilância (2019): esses dados alimentam “produtos de predição que antecipam o que um determinado indivíduo faria agora, daqui a pouco e mais tarde”, gerando “uma nova espécie de poder que chamo de instrumentarismo. O poder instrumentário conhece e molda o comportamento humano em prol das finalidades de terceiros. Em vez de armamentos e exércitos, ele faz valer sua vontade através do meio automatizado de uma arquitetura computacional cada vez mais ubíqua composta de dispositivos, coisas e espaços inteligentes conectados em rede”. Todo esse aparato “produz um entorpecimento psíquico que nos habitua às realidades de estar sendo seguido, analisado, minerado e modificado”.
Neste mundo de entorpecidos felizes, pensar é atitude suspeita.
Servidão voluntária
“Não nos contentamos com a obediência negativa nem com a submissão mais abjeta. Quando finalmente se render a nós, terá de ser por livre e espontânea vontade”. George Orwell, 1984
No totalitarismo tecnofinanceiro, a internet torna certeiro o lucro dos bancos e torna a sociedade dócil à aprovação de leis contra ela própria.
Por nossa livre e espontânea vontade.
O poder total não admite o contraditório. Gigantes da internet e grupos de mídia servem aos mesmos senhores. E mesmo redutos que ostentam o rótulo de independente trazem nos seus balanços financeiros a marca da besta.
“Parecendo feitas de ar reluzente, as paredes transparentes que nos cercam nos deixam sempre à vista, banhando-se eternamente em luz. Esta forma de viver facilita a difícil e nobre missão dos Guardiões, além disso, nada temos a esconder uns dos outros”. Ievgueni Zamiátin, Nós
As visões de Zamiátin, Orwell e Huxley se materializam. Mas já não há resistência.
“Graças à internet e às redes sociais, nossos hábitos, nossas preferências, opiniões e mesmo emoções passaram a ser mensuráveis. Hoje, cada um de nós se desloca voluntariamente com sua própria ‘gaiola de bolso’, um instrumento que nos torna rastreáveis e mobilizáveis a todo momento. No futuro, com a ‘internet das coisas’, cada gesto irá gerar um fluxo de dados não mais exclusivamente ligado aos atos de comunicação e de consumo, mas também a fatos como escovar os dentes ou adormecer no sofá da sala”. Guiliano Da Empoli, Os Engenheiros do Caos (2019)
“A cidade pestilenta, atravessada inteira pela hierarquia, pela vigilância, pelo olhar, pela documentação, a cidade imobilizada no funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa sobre todos os corpos individuais – é a utopia da cidade perfeitamente governada. A peste (pelo menos aquela que permanece no estado de previsão) é a prova durante a qual se pode definir idealmente o exercício do poder disciplinar. Para fazer funcionar segundo a pura teoria os direitos e as leis, os juristas se punham imaginariamente no estado de natureza; para ver funcionar suas disciplinas perfeitas, os governantes sonhavam com o estado de peste”. Michel Foucault – Vigiar e Punir, 1975
Klaus Schwab, A Quarta Revolução Industrial(2016): “Estamos a bordo de uma revolução tecnológica que transformará fundamentalmente a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos. Em sua escala, alcance e complexidade, a transformação será diferente de qualquer coisa que o ser humano tenha experimentado antes”.
Schwab é fundador e porta-voz do Fórum Econômico Mundial. Ele, príncipe Charles, Microsoft, Amazon, Pfizer, Shell e outras gigantes anunciam um “grande reset” nas bases da economia mundial: um “novo contrato social”, com decisões globais para problemas globais, calcado em Inteligência Artificial, biotecnologia, energias renováveis. Nessa revolução, robôs substituirão paulatinamente o trabalho humano. E o BIS (Bank for International Settlements) coordenará a implantação de um sistema financeiro global, para o qual é preciso “alavancar o Blockchain como nunca antes” visando à criação de uma moeda única.
Um novo processo de turbinação da mais-valia. Como os anteriores, traz promessas sedutoras: um capitalismo mais humano, ecológico, responsável.
Dos resets mais modernos, lembremos o taylorismo/fordismo do começo do século 20: linha de montagem, especialização, compartimentação, produção em massa para consumo em massa. Requeria mais mão-de-obra, salários mais altos e mais compras, consolidando um ciclo.
Na segunda metade do século, o toyotismo aperfeiçoa o sistema, eliminando desperdícios e trazendo o just-in-time. Os fornecedores tornavam-se uma extensão das linhas de montagem, num fluxo contínuo de produção.
Esse modo de produção depende de sincronicidade para manter a cadeia produtiva. Kanban.
Os lockdowns intermitentes quebram essa sincronia: a falta de regularidade mata o toyotismo, descompassando a produção. O descompasso gera escassez, aumento de preços dos insumos, redução do consumo e quebra das pequenas e médias empresas – obrigadas a recorrer a instituições financeiras para sobreviver.
Saldo dos primeiros meses do reset: 97 milhões de pessoas a mais entre as que vivem com menos de US$ 1,90 por dia.
Pobreza e felicidade
“A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais”. Marx e Engels – O Manifesto Comunista, 1948
Resets visam sempre ao lucro do capitalista, não ao bem-estar coletivo. Pelo contrário: ao longo do tempo, quanto mais a tecnologia produtiva avançou, pior para o proletariado. No atual auge tecnológico, os millenials estadunidenses, ao atingir os 40 anos, detêm 4,8% da riqueza mundial; a geração anterior, X, detinha 9%; os baby boomers, 21%.
A revolução de Schwab dará sobrevida ao lucro jogando mais pessoas para fora do sistema produtivo. Recursos naturais, energia e comida ficarão ainda mais concentradas. Não-sócios do Fórum ficarão sem acesso à alimentação adequada, congelarão no inverno do norte por falta de energia, dependerão de salários miseráveis e políticas assistenciais. Mas eles garantem: seremos felizes.
“…no decorrer dos séculos havíamos imaginado ameaças na forma de poder estatal. Essa crença nos deixou completamente despreparados para nos defendermos de novas empresas com nomes criativos, dirigidas por jovens gênios que pareciam capazes de nos prover com exatamente aquilo pelo qual ansiávamos com um custo mínimo ou nulo”. Shoshana Zuboff – A Era do Capitalismo de Vigilância, 2019
Com a proibição de shows, peças, filmes, todas as expressões culturais ficaram sujeitas aos algoritmos. O fim da privacidade previsto por Zuckerberg.
Vigilância no lazer, no trabalho, nas compras, no sono. A conversão ininterrupta de cidadãos em consumidores. O Grande Irmão recebido de braços abertos.
O espantalho e os fazendeiros
“Em uma era em que a memória é terceirizada para Google, GPS, alertas de calendário e calculadoras, há necessariamente uma perda generalizada de conhecimento, que não é apenas memória, mas também memória motora. Em outras palavras, um processo de longo prazo de desativação de conexões em seu cérebro está em andamento. Isso oferecerá vulnerabilidades e oportunidades”. Johns Hopkins University e Imperial College London – Cognitive Warfare, 2021
No Brasil, a oportunidade foi aproveitada.
Sob emergência pandêmica, a gestão Bolsonaro conseguiu sem resistência desviar dinheiro da saúde, educação, ciência e tecnologia para o mercado assegurando a perpetuação desses desvios.
“Vários tipos de crenças podem ser introjetados em pessoas depois de suas funções cerebrais terem sido suficientemente danificadas, acidentalmente ou deliberadamente induzidas, por medo, raiva ou excitação. Entre os resultados desses distúrbios, o mais comum é a perda temporal de senso crítico e a sugestionabilidade potencializada. Essas manifestações de grupo, algumas vezes classificadas como ‘instinto de rebanho’, se evidenciam em tempos de guerra, epidemias severas e demais períodos de ameaça coletiva, intensificando ansiedades e sugestionabilidade em massa”. Tavistock Institute – Battle for the Mind, 1957
China, Cuba e Venezuela, antigos aliados, foram abandonados por tratarem seus pacientes com medicamentos não aceitos pela Big Pharma.
No Terceiro Reich pós-moderno, reuniões são malvistas. Duvidar é conspirar. Não há abraços, nem beijos – só desumanização contínua, regressão cognitiva, socioafetiva. Resistir significa o exílio em novos guetos.
Celebremos, então, o Papai Noel quarentenado, a falta de comida, os velhos trabalhando. Todo mundo feliz.
“Não temos mais um homem que ‘reina’ graças à tecnologia inventada por ele, mas, ao contrário, temos um homem submisso à tecnologia, dominado pelas próprias máquinas. O inventor é esmagado pelos seus inventos”. Giovanni Sartori – Homo videns, 2001
“…infelizmente, a maioria dos brasileiros defende a Petrobras estatal. Diante disso, cabe a nós seguir fatiando a empresa para entregá-la, pedaço por pedaço, às multinacionais. Assim, nos preservamos da opinião pública e seguimos nosso projeto. Estamos no rumo certo. Entregamos ao mercado a BR Distribuidora, acabamos com o conteúdo local, que tanto prejudicou o lucro dos parceiros internacionais, aprofundamos a venda de ativos e os leilões do pré-sal. Serra que me perdoe, mas é (sic) Bolsonaro e Paulo Guedes os responsáveis por executar este plano brilhantemente”. Roberto Castello Branco, presidente da Petrobras – Relatório aos acionistas, agosto de 2019
Novembro de 2021: 5 anos após o último golpe de Estado, o litro da gasolina chega a R$ 8,00. E não há teto no horizonte.
O “projeto” de Castello Branco, Bolsonaro, Guedes e seus parceiros internacionais segue seu rumo. Oficialmente, o projeto se chama Preço de Paridade de Importação, PPI. A partir dele, a Petrobras passou a calcular o preço de seus combustíveis pela cotação internacional do barril de petróleo e custos de produção e operação dos Estados Unidos. O cálculo também considera a cotação do Real frente ao dólar, que Guedes acha “interessante” manter em 5.
Para garantir mercado às petrolíferas estrangeiras, o governo reduziu em um terço a capacidade de refino da Petrobras, matando a competitividade da empresa e deixando o país dependente das importações – algo que a mídia noticia como desinvestimentos.
É uma escolha deliberada do governo para transferir riqueza nacional a cofres privados. Quando, ocasionalmente, o tema vem à baila, troca-se o presidente da empresa, mas o “projeto” segue. Para manter o saque, mantém-se um militar no comando da empresa, com salário de R$ 220 mil/mês.
Para compensar a queda de produção, a atual direção está elevando a participação da empresa na composição do preço, de 28,7%, em 2017, para 33,4% agora em 2021.
Em propaganda oficial, o governo informa receber só R$ 2,33 por litro de gasolina. O que esconde: seu custo de extração e refino, incluída sua participação e custo de afretamento no 2º trimestre de 2021, foi de US$ 20,16 por barril. Considerando que um barril tem 159 litros de óleo, temos uma média de R$ 0,67 por litro de derivado (cotação de 5,30 R$/US$, do 2º trimestre 21).
“Pode se assumir, conservadoramente, que o custo de equilíbrio seja de 25,00 US$/barril. Somado ao custo de refino, também conservador, de 2,00 US$/barril, se totaliza o custo de 27,00 US$/barril, suficientes para arcar com custos operacionais, juros, impostos, seguros, depreciação e amortização. Temos o custo total de 0,90 R$/litro dos combustíveis produzidos, em comparação com os Preços Paritários de Importação (PPI) proporcionam lucros superiores a 100%”. Felipe Coutinho, vice-presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras
Graças ao “projeto”, acionistas estrangeiros, hoje donos majoritários da empresa após as privatizações, estão recebendo dividendos jamais vistos na história – dinheiro que deveria ajudar a União em políticas de estabilização de preços, se a participação estatal na Petrobras não fosse cada vez mais baixa.
Entre os grandes beneficiados com os lucros estão acionistas gigantes da finança mundial como Baillie Gifford, Capital e Goldman Sachs, controlados das sombras por fundos mútuos ainda maiores, como Vanguard e Blackrock.
Enrico Mattei, então presidente da ENI – a Petrobras italiana – as chamava de vampiras, citando o acordo entre elas feito em 1928, quando planejaram a partilha do mercado de hidrocarbonetos. Em 1962, o avião em que Mattei viajava explodiu no ar. Mais um nome na extensa lista dos ficam no caminho das petrolíferas: Mossadegh, Abdel Nasser, Jaime Roldós, Saddam Hussein, al-Gaddafi.
No Brasil, os explosivos usados pelo Departamento de Estado americano foram Judiciário, imprensa e congressistas. Desde então, as vampiras têm abocanhado campos de petróleo, refinarias, usinas de biocombustíveis, fertilizantes, gasodutos, redes de distribuição.
A história das civilizações é a história da extração e utilização de energia. A história da imprensa brasileira é a história da sabotagem à Petrobras.
Enquanto não compreendermos isto, pagaremos pela árvore – formação de mão-de-obra, pesquisa, infraestrutura, prospecção, exploração – para que outros povos colham o fruto. A privatização total, então, “deixará de ser uma utopia”.
“Política cognitiva, para oferecer uma definição preliminar, consiste no uso consciente ou inconsciente de uma linguagem distorcida, cuja finalidade é levar as pessoas a interpretarem a realidade em termos adequados aos interesses dos agentes diretos e/ou indiretos de tal distorção”. Guerreiro Ramos – A Nova Ciência das Organizações
“Há uma tendência dos seres humanos de ver conscientemente o que gostariam de ver. Eles literalmente têm dificuldade em ver coisas com conotações negativas, enquanto enxergam com cada vez mais facilidade itens que sejam positivos“. Lionel Tiger – Otimismo, A Biologia da Esperança
“Trata-se de enganar mostrando, o ‘engana-olho’ estético: o ‘agradável’ da forma exibida anestesia sensorialmente a sensibilidade crítica”. Muniz Sodré – Antropológica do Espelho
“Como no sonho e na hipnose, na atividade anímica da massa a prova da realidade recua, ante a força dos desejos investidos de afeto“. Freud – Psicologia das Massas
“A mentira é uma forma de talento, enquanto que o respeito pela verdade vai de par com a grosseria e com a falta de finura”. Cioran – Silogismos da Amargura
“Portanto, visto que a aparência, como o demonstram os sábios, violenta a verdade e é senhora da felicidade, para ela devo tender inteiramente“. Platão, A República
“Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem“. José Saramago – Ensaio sobre a Cegueira
“Em muitos casos, o dinheiro das drogas era o único investimento com capital líquido”. Antonio Maria da Costa, diretor do Escritório da ONU para Drogas e Crime, sobre o mercado financeiro na crise de 2008.
Ao tornar-se presidente, o narcotráfico teria um dos seus oficialmente comandando o país. As provas só emergiram anos depois de Uribe ter deixado o cargo.
É praxe: o império registra as contravenções de seus comandados. Assim que esses perdem a serventia, o registro vaza. O que aconteceu com Uribe aconteceu com Escobar, Pinochet, Barry Seal.
Em janeiro de 2020, um jato com registro norte-americano levando 1 tonelada de cocaína foi capturado no México. Havia sido carregado na província boliviana de Guayaramerín, feudo da família de Jeanine Añez. Esta, recém-empossada presidente da república após o golpe de Estado gestado pelos norte-americanos.
A Argentina dos áudios ainda não era a da chapa Alberto Fernández-Cristina Kirchner, que meses antes conseguira desmascarar um agente sob disfarce de advogado junto à lava jato local visando impedir sua eleição.
O Paraguai é o centro da “rota caipira” que sai de Peru e Bolívia até os portos brasileiros, onde a droga é embarcada ao Velho Mundo. Essa rota é dominada pelo PCC.
Vazamento é uma etapa da crescente exposição midiática sobre a participação dos bancos na geopolítica da droga. Além do HSBC, nascido do tráfico britânico de ópio, vez por outra surgem matérias sobre bancos traficando, mas com exposição curta e sem repercussão. Drogas ilícitas seguem ocultas como commodity-base da finança que movimenta US$ 400 bilhões/ano – 8% do comércio global.
Indochina
Além da banca financeira, há as guerras. Sem tráfico, o império estadunidense é insustentável.
Nos anos 50, usaram LSD e mescalina em cobaias humanas no projeto MK Ultra.
O ópio banca impérios há quase 200 anos, mas a vitória dos comunistas na guerra civil chinesa em 1949 inviabilizou o tráfico que deu origem ao HSBC. Os norte-americanos, então, fizeram do Triângulo do Ouro o centro de produção e distribuição de heroína, guardado pelas tropas derrotadas e expulsas da China pelo exército de Mao Tsé-Tung.
Roger Trinquier, coronel francês que participou dos ataques à então Indochina, conta que a droga partia dos laboratórios locais para os traficantes de Marselha, que a vendiam na Europa. A grana ajudava a financiar chineses rebeldes, seus instrutores e demais operações norte-americanas na região. O transporte ficava a cargo da Air America, empresa de fachada da CIA cuja história virou pastiche hollywoodiano.
Mas o avanço do Tet no Vietnã atrapalhou os negócios, levando os invasores a montar um false flag que justificasse o envio de seus próprios soldados. A confirmação da farsa só viria a público em 2001.
Em 1975, os norte-americanos desistiram da região e retiraram seu aparato militar. Mas o saque ocidental tornara o Sudeste da Ásia fonte de 70% da matéria-prima para ópio e heroína no mundo.
A desestabilização começa com a criação do talibã, chefiado pelo saudita Osama Bin Laden, que os EUA apresentam ao mundo como herói da liberdade.
Conta Zbigniew Brzezinski, assessor de segurança nacional de Jimmy Carter: “Segundo a versão oficial da história, o suporte da CIA ao Mujahedin começou em 1980, quer dizer, após o exército soviético ter invadido o Afeganistão em 24 de dezembro de 1979. Mas a verdade, escondida até hoje, é outra: foi em 3 de julho de 1979 que o presidente Carter assinou a primeira diretiva de apoio secreto aos adversários do governo pró-soviético em Cabul”.
Os heróis da liberdade derrubaram o governo afegão. E como a Indochina de meio século antes, o país foi transformado numa grande monocultura de papoula, registrando sucessivos recordes de colheita.
Hora de acionar Bin Laden novamente. Aviões, torres desabando, comoção mundial, e os yankees estão legitimados para invadir novamente o Afeganistão. O desembarque das tropas da OTAN garante a volta do ópio em produção recorde.
A heroína bancou ainda assaltos dentro da Europa. Com o lucro da droga, a OTAN destroçou a Iugoslávia utilizando traficantes do Kosovo.
Criava-se, assim, nova rota de abastecimento aos consumidores do Ocidente. E quem fosse contra, iria pro Eixo do Mal.
“A Operação Liberdade Duradoura– juntamente com a ‘libertação’ do Iraque – custou uns espantosos vários milhões de milhões de dólares. E ainda assim a rota da heroína, a partir do Afeganistão ocupado, prospera (…) operações externas da CIA são financiadas a partir destes lucros. A acusação de que os Talibã estavam a utilizar o comércio de heroína para financiarem suas operações era uma falsificação e uma forma de apontar a direção errada”. (Pepe Escobar, Diário Liberdade)
Aí, um bando de guerrilheiros armados tomou o controle da ilha. A Casa Branca tentou uma invasão pela Baía dos Porcos, mas Cuba resistiu. Santo Trafficante recebeu da CIA a missão de matar o líder da resistência, Fidel Castro. Falhou, assim como falharam as outras 600 e poucas tentativas de matá-lo.
Celerino Castillo, ex-agente do DEA, explicou como os aviões carregados da droga decolavam de países aliados, como El Salvador, sob proteção norte-americana.
O ex-DEA Michael Levine registrou toda a negociação e logística da droga: da Bolívia, seguia via área ao México, onde os militares locais garantiam a passagem até a entrega em terras estadunidenses.
Forças que operaram ataques aos governos petistas reemergem com os movimentos Estamos Juntos e Juntos pela Democracia e pela Vida. Este, capitaneado por Fundação Lemann e Itaú, propõe “cerrar esforços para barrar a marcha bolsonarista” rumo à “ruptura do Estado Democrático de Direito”.
Já o Estamos Juntos reúne atores globais, ex-integrantes do Governo Michel Temer como Ilan Goldfajn e Marcelo Calero, Fernando Henrique Cardoso (poupado pela Lava Jato), o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta, Luciano Huck e Marcelo Tas, aliado do Partido Democrata. É mais vago: “…defender a lei, a ordem, a política, a ética, as famílias, o voto, a ciência, a verdade, o respeito e a valorização da diversidade, a liberdade de imprensa, a importância da arte, a preservação do meio ambiente e a responsabilidade na economia”.
Entre os assinantes, sobrenomes conhecidos – como Joana Jereissati, filha de Tasso Jereissati e Sofia Carvalhosa, de Modesto Carvalhosa – e outros ligados à Operação Lava Jato e à queda de Dilma Rousseff: Miguel Reale Jr., Selton Melo, Barbara Paz, Samuel Rosa.
A eles juntam-se supostas vítimas do golpe de 2016 – Fernando Haddad, André Singer e Eugênio Aragão – e satélites: Guilherme Boulos, Manuela D´Ávila, Marcelo Freixo, Flávio Dino, Jandira Feghali. Há lideranças partidárias de PSB, PDT, Rede, cientistas políticos, filósofos e economistas frequentes em páginas e telas da grande mídia.
Define-os o ex-senador Roberto Requião: “reunião de políticos frouxos, pusilânimes, disponíveis e desfrutáveis com um amontoado de oportunistas, com as madalenas hipoteticamente arrependidas, com os assassinos de reputações, com os ditos liberais, com os mercadores e rentistas, com banqueiros e ex-banqueiros, com animadores de auditório, com ex-presidentes e ex-ministros que atentaram contra o Estado Nacional e alienaram a nossa soberania”. Ou “a mesma merda, sempre”.
Com o PIB destroçado e o desemprego em massa, o país mergulha num protofascismo militar-jurídico-midiático. A lava jato cumpriu sua missão.
“…para saber quem faz as leis no Brasil, não é tão importante conhecer a máquina de produzi-las, como, sobretudo, inquirir de onde vêm as forças que impulsionam aquela máquina (…) Nas Faculdades de Direito ensinam-lhes todo o mecanismo. Não há, porém, nenhuma cadeira, em todo o quinquênio escolar que se ocupe com o estudo das forças que movimentam a engrenagem complicada de elaboração das leis. Se algum professor penetra nesse terreno, é por conta própria. Não é bem visto pelos colegas da Congregação. Não passará de um ‘comunista encapuçado’, um ‘demagogo na feira das vaidades’.” Quem faz as leis no Brasil – Osny Duarte Pereira, desembargador cassado pelo Ato Institucional nº1
…